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Cícero, “Tratado das leis”, 52 a.C.

 

 

[...] E entre todas as espécies animais, nenhuma, tirante o homem, tem o mínimo conhecimento de Deus; entre os homens, não há povo civilizado ou bárbaro que não se sinta compelido a crer em um deus, ignorando, embora, em que deus deva crer. Daí resulta que, para conhecer Deus, é necessário remontar à fonte de onde viemos. Na verdade, a mesma virtude está presente no homem e em Deus, fato que não ocorre com as demais espécies. E essa virtude não é outra coisa senão a natureza consumada e levada ao ponto culminante de perfeição. Logo, há similitude entre o homem e Deus. Se essa relação é real - como imaginar um parentesco mais aproximado e evidente? Por isso, a Natureza tem criado abundantemente as coisas necessárias e úteis aos homens; tais riquezas não foram criadas a esmo, mas com o objetivo determinado de serem apropriadas pelo homem. Tal se aplica aos grãos e às bagas, frutos da fecunda terra, e aos animais domésticos, que se reproduzem para suprir as necessidades do homem, uns pelo uso, outros pelo consumo. Sob a orientação da Natureza, descobrimos as inúmeras artes, quando, tomando-a como modelo, a humana razão adquiriu os recursos necessários para a própria, vida. [...]

[...] Certamente, grandes são as questões ora bosquejadas. Porém, entre todas que ensejam as discussões dos doutos, nenhuma se assemelha à de compreender plenamente que nascemos para a Justiça e que o Direito não assenta em convenções, mas na Natureza. Tal se evidenciará a quem analisar os laços sociais e a união entre os homens. Nada há tão semelhante, tão igual, uns aos outros, como nós entre nós. E se a depravação dos costumes e as divergentes opiniões não deformassem e dobrassem os espíritos fracos aos seus caprichos, todo homem se assemelharia a todos, e qualquer definição que fosse dada a um homem serviria a todos. Tais considerações bastam para provar que não há diferenças no gênero humano. Com efeito, a razão, a única faculdade que nos coloca acima dos animais e nos torna capazes de inferir, demonstrar, refutar, discutir, resolver e concluir é, sem dúvida comum a todos os homens, pois, ainda que díspares no saber, possuem a mesma aptidão para aprender. Não apenas cada um dos sentidos capta objetos parecidos, mas também em cada um dos objetos impressionam os sentidos da mesma forma. Essas impressões - que são as primeiras noções a que me referi - são idênticas em todos, e a mente, ao expressar o discurso, mesmo empregando termos distintos expressa significados semelhantes. Não há indivíduo, pertença à raça que pertencer, que não consiga, sob a condução da Natureza, alcançar a virtude.

A semelhança entre os homens manifesta-se não só pelas qualidades, mas também pelos defeitos. Na verdade, todos se deixam atrair pelo prazer que, consistindo em atração viciosa, apresenta certa semelhança com um bem da Natureza; e sua delicadeza e suavidade seduzem e levam ao erro de tê-lo como um bem saudável e, por semelhante equívoco, fugimos da morte por tê-la como se fosse a dissolução da natureza e nos apegamos à vida, porque esta nos mantém no estado em que nascemos e temos a dor, por sua aspereza, como o pior dos males e por dar a impressão de conduzir à destruição da Natureza. E havendo entre a honra e a glória semelhanças, têm-se por felizes os que vivem entre honrarias e por infelizes os que permanecem no anonimato. Os desgostos, as alegrias, os desejos e os temores assaltam por igual a todos os espíritos, e, se as crenças de uns diferem das dos outros, aqueles que divinizam o cão e o gato o fazem inspirando-se na mesma superstição que atormenta todos os povos. Na verdade, qual a nação que não aprecia a cortesia, a amabilidade, a gratidão? Qual não despreza e odeia os orgulhosos, os maus, os cruéis, os mal-agradecidos? Tudo isso nos dá a entender que o gênero humano constitui uma só e única sociedade  que seu progresso moral decorre do viver racionalmente. [...]

[...] Por isso, Sócrates tinha bons motivos para amaldiçoar o primeiro homem que separou a utilidade e o Direito, e lamentar o que se tornou segundo ele, o princípio de todas as desgraças. [...]

[...] Se o que nos move a sermos honestos não fosse a própria honradez mas a utilidade ou o interesse, não seríamos bons, mas astutos. Que faria nas sombras quem temesse apenas a testemunha e o juiz? Que faria no deserto, acaso encontrasse um débil e solitário homem a que pudesse despojar de grande porção de ouro? Nosso homem, por natureza bom e justo, dele se aproximará falando e o ajudará a encontrar o caminho. Bem sabeis o que com ele fará aquele que não tem consideração com os demais e que regra a vida pelo interesse; dirá que não tirou a vida ou despojou o solitário viajante, não porque tais atos seriam desonrosos em si mesmos, mas por temor de ser descoberto, ou, por outra, de ser prejudicado. Bela razão da qual tanto os homens cultos como os ignorantes deveriam envergonhar-se!

Na verdade, o maior absurdo é supor justas todas as instituições e todas as leis dos povos. Justas serão as leis dos tiranos? Se aqueles Trinta de Atenas resolvessem impor leis à cidade e se todos os atenienses suas leis tirânicas aprovassem, teríamos de considerá-las justas? Penso que algo semelhante ocorreu quando um interrex¹ nosso editou uma lei que permitia ao ditador condenar qualquer cidadão à morte, sem julgamento formal. Na verdade, existe um só direito, aquele que une a sociedade humana e que nasce de uma só Lei; e essa Lei é a reta razão, quando ordena ou proíbe. Quem a ignorar é injusto, esteja ou não escrita em algum lugar. Se a Justiça consistisse em obedecer às leis escritas e agir conforme as instituições dos povos, como julga a mesma escola, tudo seria medido pelo padrão da utilidade e qualquer um, quando lhe fosse proveitoso, poderia ignorar ou violar as leis. Resulta daí que não existe justiça, se não assentada na Natureza, e que a justiça fundada na utilidade acaba com qualquer justiça. Se a Natureza não for a base do Direito, acabam todas as virtudes. Realmente, onde ficariam a generosidade, o amor à pátria, o respeito e a vontade de servir aos outros ou de ser grato pela ajuda recebida? Tais virtudes nascem de uma inclinação natural que nos leva a amar os homens, e nela reside o Direito. Não seria apenas o dever com os demais homens que ruiria, também ruiriam os deveres com os deuses, porque, a meu juízo, estes devem conservar-se pelo temor, tendo em vista a união que existe entre o homem e a divindade, e não pelo medo.

 

Do livro: Ishay, Micheline R. (org.). Direitos Humanos: Uma Antologia – SP Edusp, 2006 p.88 a 90.

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