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Jean - Jacques Rousseau: Sobre o Contrato Social (Primeira Versão) ou Ensaio Sobre a Forma da República Conhecido como Manuscrito de Genebra - 1761

Jean - Jacques Rousseau

 

 

 

 

Sobre o Contrato Social (Primeira Versão) ou Ensaio Sobre a Forma da República Conhecido como Manuscrito de Genebra (1761)*

 

Livro I

 

Conceitos Preliminares sobre o Organismo Social

Capítulo I: Tema desta obra

Tantos autores célebres trataram das máximas do Governo e das regras do direito civil que nada há de útil a dizer sobre este assunto que já não tenha sido dito. Mas talvez houvesse maior concordância entre eles, e talvez as relações do corpo social tivessem sido estabelecidas mais claramente se se tivesse começado por melhor determinar sua natureza. Foi o que procurei fazer neste escrito. Não se tratará aqui, portanto, da administração desse corpo, mas da sua constituição. Faço-o viver, e não agir. Descrevo seus mecanismos e suas peças, coloco-as em seu lugar. Ponho a máquina em condições de funcionar. Outros, mais sábios, regularão seus movimentos.

 

Capítulo II: Sobre a Sociedade em Geral Instituída pela Espécie Humana

Comecemos indagando a origem da necessidade das instituições políticas.

Instantaneamente, além da pessoa em particular de cada parte contratante este ato de associação cria um organismo moral e coletivo composto de tantos membros quanto há vozes no conjunto, e ao qual o ser comum confere unidade, vida e vontade compartilhadas. Composta pela união de todas as outras, essa pessoa assume o nome de um órgão político, que os seus membros chamam de Estado quando é passivo, soberano quando é ativo, potência quando o comparam com os seus semelhantes. Quanto aos próprios membros, assumem coletivamente o nome de povo, e individualmente de cidadãos, como membros da comunidade ou participantes da autoridade soberana, sendo chamados de súditos por estarem sujeitos às leis do Estado. Mas esses termos, raramente usados de forma inteiramente precisa, são muitas vezes confundidos, sendo porém bastante conhecê-los para poder distingui-los quando o sentido do discurso assim o exige.

A fórmula mostra que o ato original da confederação incluiu compromisso recíproco entre o público e os indivíduos, e que cada um destes, por assim dizer contratando consigo mesmo, verifica que tem um duplo compromisso: com outros indivíduos, como membro do soberano, e com o soberano, como membro do Estado. Mas é preciso observar que não se pode aplicar aqui o princípio do direito civil segundo o qual ninguém está obrigado pelos compromissos que uma pessoa assume consigo mesma, porque há uma grande diferença entre esse tipo de obrigação e aquele contraído com um todo do qual também se faz parte. Observe-se ainda que a deliberação pública que pode obrigar todos os súditos com relação ao soberano, devido às duas situações distintas em que se encontra cada súdito, mas pela razão contrária não pode obrigar o soberano para consigo próprio, e em conseqüência contraria a natureza do organismo político o fato de o soberano impor-se uma lei que não possa infringir. Como o soberano só pode ser considerado sob uma relação singular, está na situação de um indivíduo que contrata consigo mesmo. Disto se deduz que não há nem pode haver qualquer tipo de lei fundamental que seja obrigatória para o conjunto do povo. O que não significa que esse conjunto não possa perfeitamente empenhar-se em um acordo com outro, pelo menos na medida em que isto não contrarie a sua natureza, porque com referência ao estrangeiro não passa de um simples ser ou um indivíduo.

Com tal multiplicidade reunida em um só corpo, não seria possível ofender um dos membros sem agredir também o conjunto em uma das suas partes; e menos ainda ofender o conjunto sem que seus componentes se ressentissem.  Com efeito, além da existência comum, todos arriscam também a parte de si mesmos que o soberano não utilizou, e cujo acesso exige a proteção pública. Assim, tanto o dever como o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes a se ajudar mutuamente; e as mesmas pessoas devem procurar reunir sob esse duplo relacionamento todas as vantagens que dele dependem.

No entanto, algumas distinções precisam ser feitas, uma vez que como o soberano está formado dos particulares que o compõem, nunca tem um interesse que os contrarie, e por isso a potência soberana nunca precisaria de qualquer garantia com relação a essas mesmas pessoas, porque é impossível que o corpo queira prejudicar os seus membros. Não acontece o mesmo com os particulares, com respeito ao soberano, a quem, a despeito do interesse comum, deixariam de cumprir seus compromissos se aquele não encontrasse meios de garantir a sua fidelidade. Com efeito, como homem cada indivíduo pode ter uma vontade particular que contrarie ou se afaste da vontade geral que tem na qualidade de cidadão. Sua existência absoluta e independente pode fazer com que considere o que deve à causa comum como uma contribuição gratuita, cuja perda para os demais seria menos prejudicial do que o ônus representado pelo seu cumprimento; e considerando a pessoa jurídica do Estado como uma entidade de razão, que por não ser um homem usufruiria dos direitos do cidadão sem querer cumprir os deveres do súdito: injustiça cujo avanço não tardaria a causar a ruína do organismo político.

Portanto, para que o contrato social não seja uma fórmula vã, é preciso que, independentemente da concordância dos particulares, o soberano conte com certas garantias do seu compromisso com a causa comum. De modo geral o juramento é a primeira dessas garantias; mas como ele decorre de uma situação bem diferente, e como cada um modifica à sua vontade as obrigações que jurou assumir, conta pouco no âmbito das instituições políticas, sendo preferível, com boas razões, garantia mais efetiva. Assim, o pacto fundamental contém tacitamente esse compromisso, que só ele pode dar força a todos os demais: que aquele que recusar sua obediência à vontade geral será a isso obrigado pelo conjunto do corpo. Mas sobre este ponto é importante lembrar que a característica própria e clara desse pacto é a de que o povo só contrata consigo mesmo - isto é, o povo em seu conjunto, como soberano, tendo os indivíduos que o compõem na qualidade de súditos. Condição que compõe todo o artifício e o jogo do mecanismo político, e só ele torna legítimos, razoáveis e sem qualquer perigo compromissos que de outra forma seriam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos.

Essa passagem do estado da natureza para o estado social produz no homem uma mudança notável, ao substituir no seu comportamento o instinto pela Justiça, ao dar às suas ações um significado moral que antes não tinham. Só então, quando a voz do dever toma o lugar do impulso físico, e o direito substitui o apetite, o homem, que até então só levava em conta a si mesmo, descobre que está obrigado a agir segundo outros princípios, e a consultar a razão antes de obedecer às suas inclinações pessoais. Mas, embora nesse estado não tenha algumas das vantagens proporcionadas pela natureza, ele se beneficia de outras mais importantes, exercita e desenvolve suas faculdades, amplia suas idéias, enobrece seus sentimentos e eleva toda a sua alma a um ponto tal que, se o abuso da sua nova condição não o degrada a uma situação inferior à de antes, deveria abençoar o momento feliz que dela o afastou para sempre, transformando-o de um animal estúpido e limitado em um ser inteligente - em um homem.

Convém reduzir essa avaliação a termos facilmente comparáveis. O que o homem perde com o contrato social é a sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que lhe é necessário; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que tem. Para que não nos equivoquemos nessa avaliação, é preciso distinguir perfeitamente a liberdade natural, que só encontra limite na força do indivíduo, da liberdade civil limitada pela vontade geral; e a posse, ou o direito do primeiro ocupante, que só depende da força, da propriedade que se baseia em um título jurídico.

 

 

Do Domínio Real

 

No momento em que se forma a comunidade, cada um dos seus membros se entrega a ela, na situação que usufrui, com todas as suas forças, inclusive os seus bens. Só por este ato a posse muda de natureza ao mudar de mãos, tornando-se propriedade nas mãos do soberano. Mas como as forças do Estado são incomparavelmente maiores do que as de cada indivíduo, a posse pública é também com efeito mais forte e irrevogável, sem ser mais legítima, pelo menos com relação aos estrangeiros. Porque por uma convenção solene - o direito mais sagrado reconhecido pelos homens - o Estado é senhor de todos os bens dos seus membros. Mas só o é se comparado com os outros Estados, pelo direito de primeiro ocupante que recebe dos particulares, direito menos absurdo e menos odioso que o de conquista. O qual, no entanto, se bem examinado, não tem maior legitimidade.

É assim que as terras de particulares, reunidas e contíguas, se transformam em território público; e desse modo o direito de soberania, estendendo-se dos súditos às terras que ocupam, passa a ser ao mesmo tempo real e pessoal, o que coloca os que possuem essas terras em maior dependência, e faz das suas próprias forças a caução da sua fidelidade. Vantagem que não parece ter sido bem reconhecida pelos antigos monarcas, que tendiam a considerar-se chefes de homens e não senhores de um país. Por isso se denominavam Rei dos persas, dos citas, dos macedônios, enquanto hoje os monarcas dizem ser Rei da França, da Espanha, da Inglaterra, com mais propriedade, pois ao dominar as terras têm a certeza de dominar seus habitantes.

O que essa alienação tem de admirável é que, em lugar de despojar os bens dos indivíduos, ao aceitá-los a comunidade garante a sua posse legítima, transformando a usurpação em direito e o uso em propriedade. Respeitado esse título por todos os membros do Estado, e mantido por todas as suas forças contra o estrangeiro, por uma vantajosa concessão à comunidade e mais ainda a eles mesmos, por assim dizer os cidadãos adquirem tudo o que cederam. Um enigma fácil de explicar pela distinção entre os direitos do soberano e os do proprietário, sobre os mesmos bens.

Pode acontecer também que os homens comecem a se unir antes de possuir qualquer coisa, e que apoderando-se depois de uma terra suficiente para todos a utilizem em comum, ou a dividam entre si igualmente ou de conformidade com certas proporções definidas pelo soberano. No entanto, qualquer que seja a forma de tal aquisição, o direito de cada pessoa sobre o seu próprio bem está sempre subordinado ao direito da comunidade sobre todos os bens. Sem isso não haverá solidez no vínculo social ou força real no exercício da soberania.

Terminaria o presente capítulo com uma observação que deve servir de fundamento a todo o sistema social: em lugar de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental da sociedade substitui por uma igualdade moral e legítima aquela que a natureza teria podido fazer da desigualdade física dos homens; e que sendo eles naturalmente desiguais em força ou em capacidade, são todos igualados pela convenção e pelo direito.

 

 

 

Nota

* Tradução conforme a edição de Jean-Jacques Rousseau, “Sobre o Contrato Social (primeira versão) ou Ensaio sobre a Forma da República conhecido como Manuscrito de Genebra”, em Rousseau e as Relações Internacionais, trad. de Sérgio Bath, Brasília/São Paulo, Ed. da UnB/lmprensa Oficial do Estado, 2003.

 

 

 

 Do livro: Ishay, Micheline R. (org.). Direitos Humanos: Uma Antologia – SP Edusp, 2006 p. 207 a 214.

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