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John Stuart Mill: Considerações Sobre o Governo Representativo - 1861

 

 


Capítulo XVI

Da Nacionalidade, na sua Ligação com o Governo Representativo

 

 

Podemos dizer que um grupo de homens constitui uma nacionalidade quando estão unidos por simpatias comuns, que não existem entre eles e quaisquer outros - as quais os levam a cooperar um com o outro com maior disposição do que com outras pessoas, a querer ter o mesmo governo e a desejar que este governo seja exercido exclusivamente por eles mesmos ou por uma parcela deles mesmos. Este sentimento de nacionalidade pode ter sido gerado por diversas causas. Às vezes, é fruto da identidade de raça e de descendência. A comunidade de língua e a comunidade de religião contribuem grandemente para ele. Os limites geográficos são outra de suas causas. A mais forte de todas é, porém, a identidade de antecedentes políticos, a posse de uma história nacional e a conseqüente comunhão de memórias, o orgulho e a humilhação, o prazer e a tristeza coletivos, ligados aos mesmos incidentes do passado. Todavia, nenhuma dessas circunstâncias é indispensável ou necessariamente suficiente por si mesma. A Suíça tem um forte sentimento de nacionalidade, embora os cantões sejam de raças diferentes, de línguas diferentes e de religiões diferentes. A Sicília, em toda a sua história, tem-se sentido muito distinta de Nápoles em termos de nacionalidade, apesar da identidade de religião, da quase-identidade de língua e do grande volume de antecedentes históricos comuns. Os flamengos e os valões da Bélgica, apesar da diversidade de raça e de língua, têm um sentimento de nacionalidade comum muito mais forte do que têm os primeiros com a Holanda, ou os últimos com a França. Ainda assim, geralmente o sentimento nacional se enfraquece proporcionalmente à falta de qualquer uma das causas que contribuem para ele. A identidade de língua, de literatura e, até certo ponto, de raça e de memórias têm mantido um sentimento de nacionalidade muito forte entre as diferentes partes da Alemanha, embora nunca tenham estado realmente unidas sob o mesmo governo; mas o sentimento nunca levou os Estados separados ao desejo de livrar-se de sua autonomia. Entre os italianos, uma identidade, longe de total, de língua e de literatura, aliada a uma posição geográfica que os separa de outros países por uma fronteira distinta e, talvez mais do que tudo o mais, a posse de um nome comum, que os faz todos ufanar-se das realizações passadas nas artes, nas armas, na política, no primado religioso, nas ciências, na literatura, de qualquer um que partilhe o mesmo nome, suscitam um grande sentimento nacional na população, que, embora ainda imperfeito, foi suficiente para produzir os grandes acontecimentos que estão passando agora diante de nós, apesar da grande mistura de raças e embora nunca tenham tido, nem na história antiga, nem na moderna, o mesmo governo, exceto enquanto esse governo estendeu-se, ou estendia-se, sobre a maior parte do mundo conhecido.

Onde existe esse sentimento de nacionalidade com alguma força, há uma razão prima facie que une todos os membros da nacionalidade sob o mesmo governo, e um governo separado para si mesmas. Isso equivale a dizer que a questão do governo deve ser decidida pelos governados. É difícil precisar o que qualquer divisão da raça humana deveria ter a liberdade de fazer, senão de determinar, com qual dos diversos corpos coletivos de seres humanos ela escolhe associar-se. Mas, quando um povo está maduro para instituições livres, há uma consideração ainda mais vital a fazer. As instituições livres são quase impossíveis num país formado de nacionalidades diferentes. Entre um povo sem laços de simpatias um pelo outro, especialmente se lêem e falam línguas diferentes, não pode existir a opinião pública coesa, necessária ao funcionamento do governo representativo. As influências que formam opiniões e decidem os atos políticos são diferentes nas partes diferentes do país. Um conjunto totalmente distinto de líderes tem a confiança de uma parte do país e de uma outra. Os mesmos livros, jornais, panfletos, discursos não chegam até eles. Uma parte não sabe que opiniões, ou que instigações, estão circulando em outra. Os mesmos incidentes, os mesmos atos, o mesmo sistema de governo afetam-nas de maneiras diferentes; e cada uma teme mais danos oriundos das outras nacionalidades  do que do árbitro comum, o Estado. Suas antipatias mútuas são geralmente muito mais fortes do que a inveja que sentem do governo. O fato de alguma delas se sentir prejudicada por uma política do governo comum é ciente para que a outra decida apoiar essa política. Mesmo que todas sejam prejudicadas, nenhuma sente que pode confiar na fidelidade das outras para uma resistência conjunta; nenhuma tem força suficiente para resistir sozinha, e cada uma pode achar mais vantajoso solicitar a ajuda do governo contra as outras. Acima de tudo, falta nesse caso a única e grande garantia efetiva, em último recurso, contra o despotismo do governo: a simpatia do exército pelo povo. Os militares são a parcela de toda comunidade, em que, por sua própria natureza, a distinção entre seus compatriotas e os estrangeiros é mais profunda e mais forte. Para o resto do povo, os estrangeiros são apenas estranhos; para o soldado, são homens contra quem ele pode ser chamado, no prazo de uma semana, a travar uma luta de vida ou morte. Para ele, a diferença é a mesma que existe entre amigos e inimigos - podemos quase dizer entre homens como ele e uma outra espécie de animais: porque, no que diz respeito ao inimigo, a única lei é a da força, e o único abrandamento, o mesmo que no caso dos animais - a simples humanidade. Soldados para quem a metade ou três quartos dos súditos do mesmo governo são estrangeiros não terão maiores escrúpulos em dizimá-las, nem maior desejo de perguntar por que, do que teriam em fazer a mesma coisa contra inimigos declarados. Um exército composto de diversas nacionalidades não tem outro patriotismo senão a devoção à bandeira. Estes exércitos têm sido os algozes da liberdade através de toda a história moderna. O único vínculo que os mantêm unidos são os seus oficiais e o governo ao qual servem; e suas únicas idéias, se tiverem alguma, de dever público é a obediência às ordens. Um governo que conta com tal apoio, se colocar seus regimentos húngaros na Itália e seus italianos na Hungria, pode continuar por muito tempo a governar os dois países com o mão de ferro dos conquistadores estrangeiros.

Se se disser que uma distinção tão acentuada entre o que é devido a um concidadão e o que é devido a uma criatura humana é mais digna de selvagens do que de seres civilizados e deve, com a mais extrema energia, ser contestada, ninguem defende essa opinião com mais vigor do que eu mesmo. Mas esse objetivo, um dos mais dignos que se pode propor o esforço humano, nunca pode, no estágio atual da civilização, ser promovido mantendo sob o mesmo governo nacionalidades diferentes de força como que equivalente. Num estado de barbárie da sociedade, o caso é às vezes diferente. O governo pode, então, estar interessado em abrandar as antipatias das raças, para que a paz possa ser preservada e o país, governado com mais facilidade. Contudo, quando, em algum desses povos unidos artificialmente, existem instituições livres, ou o desejo de tê-las, o interesse do governo segue direção exatamente oposta. Estará então interessado em manter e atiçar suas antipatias, para que possam ser impedidos de aliar-se uns aos outros e ele possa transformar alguns deles em instrumentos da escravização de outros. A Corte austríaca já tem empregado, durante uma geração inteira, essa tática como meio principal de governo; e com o sucesso fatal, na insurreição de Viena e na disputa húngara, que o mundo conhece bem demais. Felizmente, hoje existem sinais de que o desenvolvimento está por demais adiantado para que essa política possa ter ainda algum sucesso.

Pelas razões precedentes, geralmente uma condição necessária para as instituições livres é que as fronteiras dos governos coincidam em geral com as das nacionalidades. Mas, na prática, é possível que diversas considerações entrem em conflito com esse princípio geral. Em primeiro lugar, sua aplicação é frustrada muitas vezes por impedimentos geográficos. Existem regiões mesmo da Europa, em que nacionalidades diferentes estão tão misturadas localmente que para elas não é prático ter governos separados. A população da Hungria é composta de magiares, eslovacos, croatas, servos, romenos e, em alguns distritos, de alemães, tão misturados que são incapazes de uma separação local; e para eles não há outra alternativa senão fazerem da necessidade virtude e resignarem-se a viver juntos sob as mesmas leis e com direitos iguais. Sua comunidade de servidão, que data apenas da destruição da independência húngara, em 1849, parece estar amadurecendo e predispondo-os a essa união igual. A colônia germânica da Prússia Oriental está separada da Alemanha por parte da antiga Polônia e, como é fraca demais para manter uma independência separada, deve, se for mantida a continuidade geográfica, ou ter um governo não-alemão, ou o território polonês que a separa ter um governo alemão. Uma outra grande região em que o elemento predominante da população é alemão, as províncias de Curlândia, Estônia e Livônia, está condenada por sua posição local a fazer parte de um Estado eslavo. Na própria Alemanha oriental, existe uma grande população eslava: a Boêmia é predominantemente eslava, e a Silésia e outros distritos o são em parte. O país mais unido da Europa, a França, está longe de ser homogêneo: independentemente dos fragmentos de nacionalidades estrangeiras em suas remotas extremidades, é composta, como o provam a língua e a história, de duas porções, uma ocupada quase exclusivamente por uma população galo-romana, enquanto na outra os francos, os borguinhões e outras raças teutônicas constituem um ingrediente considerável.

Depois de ter dado a devida atenção às exigências geográficas, apresenta-se uma outra consideração puramente social e moral. A experiência mostra que é possível para uma nacionalidade fundir-se com outra e ser absorvida por ela; e quando ela era, originalmente, uma parcela inferior e mais atrasada da raça humana, a absorção lhe é altamente vantajosa. Ninguém pode supor que não seja mais benéfico a um bretão, ou a um basco da Navarra francesa, ser introduzido na corrente das idéias e sentimentos de um povo altamente civilizado e cultivado - ser um membro da nacionalidade francesa, admitido em termos iguais a todos os privilégios da cidadania francesa, partilhando as vantagens da proteção francesa e a dignidade e prestígio do poder francês - do que embirrar em seus próprios rochedos, relíquia meio selvagem de tempos passados, revolvendo-se em sua estreita órbita mental, sem participação ou interesse no movimento geral do mundo. A mesma observação se aplica ao galês ou ao escocês, como membros da nação inglesa.

Qualquer coisa que tenda realmente à mistura das nacionalidades, e à fusão de seus atributos e peculiaridades numa união comum, é um benefício para a raça humana. Não extinguindo tipos, dos quais, nesses casos, temos certeza de que restam exemplos suficientes, mas suavizando suas formas extremas e preenchendo os intervalos entre elas. O povo unido, assim como uma raça de animais cruzados (mas num grau ainda maior, porque as influências em ação são tão morais quanto físicas), herda as aptidões especiais e as boas qualidades de todos os seus progenitores, protegidos pela mistura de serem transformadas ao exagero nos vícios limítrofes. Mas, para tomar possível essa mistura, são necessárias condições especiais. São várias as combinações de circunstâncias que podem ocorrer e afetar o resultado.

As nacionalidades reunidas sob o mesmo governo podem ser mais ou menos iguais em número e em força, ou inteiramente desiguais. Se forem desiguais, a menos numerosa das duas pode ser ou a superior em civilização, ou a inferior. Supondo que seja superior, ou pode conseguir, por essa superioridade, obter ascendência sobre a outra, ou pode ser subjugada pela força bruta e reduzida à sujeição. Essa última possibilidade é uma desgraça absoluta para a raça humana, que a humanidade civilizada unanimemente deve pegar armas para evitar. A absorção da Grécia pela Macedônia foi uma das maiores desgraças que já aconteceram no mundo: a absorção de algum dos países principais da Europa pela Rússia seria um infortúnio semelhante.

Se a menor das duas nacionalidades, que supomos ter o maior desenvolvimento, consegue subjugar a maior, como os macedônios, reforçados pelos gregos, fizeram com a Ásia, ou como os ingleses com a Índia, há muitas vezes um ganho para a civilização; mas os conquistadores e os conquistados não podem, nesse caso, viver juntos sob as mesmas instituições livres. A absorção dos conquistadores pelos povos menos adiantados seria um mal: esses devem ser governados como súditos, e o estado das coisas é um benefício ou um infortúnio, segundo o povo subjugado tenha ou não atingido o estágio em que é uma injúria não ser governado por um governo livre, e segundo os conquistadores façam ou não uso de sua superioridade de maneira calculada para adequar os conquistados a um nível mais alto de progresso. Esse tópico será tratado de maneira mais detalhada em capítulo subseqüente.

Quando a nacionalidade que consegue sobrepujar a outra é ao mesmo tempo a mais numerosa e a mais desenvolvida; e especialmente se a nacionalidade subjugada é pequena e não tem esperança de reafirmar sua independência; então, se é governada com qualquer justiça suportável, e se os membros da nacionalidade mais poderosa não se tornaram odiosos por serem investidos de privilégios exclusivos, a nacionalidade menor se resigna aos poucos com sua posição e se funde com a maior. Hoje em dia, nenhum baixo-bretão, nem mesmo nenhum alsaciano, tem o menor desejo de separar-se da França. Se todos os irlandeses ainda não alcançaram os mesmos sentimentos para com a Inglaterra, é em parte porque são suficientemente numerosos para conseguirem constituir uma nacionalidade respeitável por si mesmos; mas principalmente porque, até recentemente, foram governados de maneira tão desastrosa que todos os seus melhores sentimentos juntaram-se aos piores para despertar um amargo ressentimento contra o governo saxão. Essa desgraça para a Inglaterra, e uma calamidade para todo o Império, deixou de existir, pode-se dizê-lo com certeza, há quase uma geração. Nenhum irlandês é atualmente menos livre do que um anglo-saxão, nem tem um quinhão menor de todo benefício, seja para seu país seja para suas fortunas individuais, do que se tivesse nascido em qualquer outra parte dos domínios britânicos. A única mágoa real da Irlanda que ainda resta, a da Igreja do Estado, é partilhada pela metade, ou quase a metade da população da ilha maior. Agora não existe quase nada, salvo a memória do passado e a diferença da religião predominante, que mantenha separadas duas raças, talvez as duas mais adequadas, no mundo inteiro, para se completarem uma à outra. A consciência de ser tratada, finalmente, não só com justiça igual, mas também com consideração igual, está avançando tão rapidamente na nação irlandesa que está afastando todos os sentimentos que poderiam torná-los insensíveis aos benefícios que o povo menos numeroso e menos rico deve tirar, necessariamente, por ser concidadãos, em vez de estrangeiros, daqueles que não só são seus vizinhos mais próximos, mas também os mais ricos, e uma das mais livres, bem como das mais civilizadas e poderosas nações da terra.

Os casos em que existem os maiores obstáculos práticos à fusão de nacionalidades ocorrem quando as nacionalidades que foram reunidas são visivelmente iguais em número e nos outros elementos de poder. Nesses casos, cada uma, confiando em suas forças e sentindo-se capaz de sustentar uma luta igual contra qualquer uma das outras, não está disposta a fundir-se: cada uma cultiva com obstinação partidária suas peculiaridades distintivas; costumes obsoletos e mesmo línguas decadentes são revividos para aumentar a separação; cada uma se sente tiranizada se alguma autoridade for exercida dentro de seu território por funcionários de uma raça rival; e o que quer que seja concedido a uma das nacionalidades em conflito é considerado tirado de todas as outras. Quando nações, assim divididas, têm um governo despótico que é estranho a todas elas, ou que, embora originário de uma, ainda assim tenha maior interesse em seu próprio poder do que em quaisquer simpatias de nacionalidade, não conceda privilégios a nenhuma das duas nações e escolha seus instrumentos indiferentemente em todas; no curso de algumas gerações, a identidade de situação produz muitas vezes harmonia de sentimento, e as raças diferentes passam a encarar uma à outra como compatriotas; particularmente se estiverem dispersas no mesmo trecho de território. Mas, se a época de aspiração por um governo livre chega antes da realização dessa fusão, perdeu-se a oportunidade de realizá-la. A partir desse momento, se as nacionalidades inconciliáveis estão separadas geograficamente e, sobretudo, se sua localização for de tal maneira que não haja nem adequação natural nem conveniência em se unirem sob o mesmo governo (como no caso de uma província italiana sob jugo francês ou alemão), há não só uma óbvia adequação, mas também, se for dada alguma atenção à liberdade ou à concórdia, uma necessidade de romper os laços completamente. Talvez haja casos em que as províncias, após a separação, podem considerar vantajoso manterem-se unidas por um vínculo federal; mas ocorre geralmente que, se estiverem dispostas a forjar uma independência completa e tornar-se membros de uma federação, cada uma delas tem outros vizinhos com quem prefeririam ligar-se, tendo em comum maiores simpatias, se não também maior comunidade de interesse. [...]

 

Capítulo XVIII Do Governo das Possessões de um Estado Livre

 

Os Estados livres, como todos os outros, podem ter possessões, adquiridas ou por conquista ou por colonização, e nosso pais é o maior exemplo disso na história moderna. A questão mais importante é saber como essas colônias devem ser governadas.

É desnecessário discutir o caso dos pequenos postos, como Gibraltar, Adenou Heligoland, que são apenas posições militares ou navais. O objetivo militar ou naval, nesse caso, é primordial; e, de acordo com isso, os habitantes do lugar não podem ser admitidos ao governo do lugar, embora devam ser-lhes concedidos todas as liberdades e privilégios compatíveis com essa restrição, inclusive a livre administração dos assuntos municipais; e, como compensação por terem sido sacrificados localmente à conveniência do Estado governante, devem desfrutar de direitos iguais aos dos súditos nativos de todas as outras partes do Império.

Os territórios afastados, de tamanho e população razoáveis, que são mantidos como colônias, isto é, que estão sujeitos, mais ou menos, a atos do poder soberano da parte do governo principal, sem terem representação igual (quando têm) em seu legislativo, podem ser divididos em duas classes. Uns são constituídos de pessoas com um nível de civilização semelhante ao do país governante, capazes de um governo representativo e maduro para ele: é o caso das possessões britânicas da América e da Austrália. Outros, como a Índia, ainda se encontram muito longe deste nível.

No caso das colônias do primeiro tipo, esse país tem realizado extensamente, com rara completude, o verdadeiro princípio de governo. A Inglaterra sempre se sentiu um tanto obrigada a conceder àquelas suas populações afastadas que são de seu sangue e de sua língua, e a algumas que não o são, instituições representativas constituídas à imitação das suas próprias: mas, até a geração atual, ela tem agido mal com outros países no tocante à dose de autonomia que ela lhes permitiu exercerem através das instituições representativas que lhes concedeu. Alegou ser o árbitro supremo até mesmo de assuntos puramente internos de suas colônias, seguindo suas próprias idéias, e não as delas, de como decidir melhor estes assuntos. Essa prática foi um corolário natural da horrenda teoria da política colonial - outrora comum a toda a Europa, e ainda não abandonada totalmente pelos outros povos - que considerava valiosas as colônias por oferecerem um mercado para nossos produtos, que podia ser mantido apenas para nós: um privilégio que valorizamos tanto que julgamos merecedor de aplicação por permitir às colônias o mesmo monopólio de nosso mercado para seus próprios produtos que reclamamos para nossos produtos no delas. Esse notável plano de enriquecê-las e a nós mesmos, fazendo cada uma pagar enormes somas à outra, perdendo-se a maior parte pelo caminho, foi abandonado por algum tempo. Mas o mau hábito de interferir no governo interno das colônias não cessou imediatamente quando abandonamos a idéia de fazer algum lucro com isso. Continuamos a atormentá-las, não em troca de algum benefício para nós mesmos, mas em proveito de uma parte ou facção de colonos: e essa persistência em oprimir nos custou uma rebelião no Canadá, antes de termos a feliz idéia de desistir dela. A Inglaterra parecia um irmão mais velho mal-educado, que persistia em tiranizar os mais jovens por puro hábito, até que um deles, mediante uma enérgica resistência, apesar da força desigual, lhe advirta que chegou a hora de parar. Fomos espertos o suficiente para não esperar um segundo aviso. Começou uma nova política colonial das nações com o Relatório de Lord Durham, um testemunho imortal da coragem, do patriotismo e da liberalidade esclarecida deste nobre e da inteligência e da sagacidade prática de seus dois co-autores, Mr. Wakefield e o saudoso Charles Buller[1].

Hoje em dia, é um princípio estabelecido da política britânica, professado na teoria e posto fielmente em prática, permitir que suas colônias de raça européia, em igualdade com a mãe-pátria, tenham o máximo grau de autogoverno interno. Deu-se-lhes permissão de elaborar suas próprias constituições representativas livres, alterando da maneira que julgassem adequada as constituições já bastante populares que lhes havíamos dado. Cada uma é governada pelo seus próprios legislativo e executivo, constituídos segundo princípios altamente democráticos. O veto da Coroa e do Parlamento, embora nominalmente reservado, é exercido apenas (e muito raramente) em questões que dizem respeito a todo o Império, e não exclusivamente à colônia específica. Que forma liberal foi dada à distinção entre questões das colônias e do Império podemos ver no fato de que todas as terras devolutas nas regiões da parte posterior de nossas colônias americanas e australianas foram cedidas às comunidades coloniais sem qualquer controle; embora pudessem, sem incorrer em injustiça, ter sido deixadas nas mãos do Governo Imperial, para serem administradas com maior proveito de futuros emigrantes de todas as partes do Império. Assim, cada colônia tem pleno poder sobre todos os seus assuntos, como teria se fosse membro de uma federação, mesmo das mais frouxas; e muito maior do que teria sob a Constituição dos Estados Unidos, visto que são livres até mesmo para taxar, a seu bel-prazer, os produtos importados da mãe-pátria. A união das colônias com a Grã-Bretanha é o tipo mais brando de união federal; mas não é uma federação estritamente igualitária, já que a mãe-pátria reteve os poderes de um governo federal, embora reduzidos na prática a seus limites mais estreitos. Essa desigualdade constitui, evidentemente, até onde vai, uma desvantagem para as colônias que não têm voz na política externa, mas estão presas às decisões do país superior. São compelidas a juntar-se à Inglaterra em caso de guerra, sem que sejam consultadas previamente. [...]

[...] Até agora, falamos das colônias cuja população tem um nível de progresso suficientemente adiantado para comportar um governo representativo. Existem outras, porém, que ainda não atingiram esse estágio e que, se mantidas assim, devem ser governadas pelo país dominante ou por pessoas delegadas por ele para essa finalidade. Essa forma de governo é tão legítima quanto qualquer outra, se for a única que, no estágio atual de civilização do povo dominado, mais facilita sua transição para um estágio superior de desenvolvimento. Existem, como já vimos, sociedades em que um enérgico despotismo é em si mesmo a melhor forma de governo para formar as pessoas naquilo que lhes falta especificamente para se tornarem capazes de uma civilização superior. Existem outras em que o simples fato do despotismo não tem na verdade qualquer efeito benéfico, já que aprenderam totalmente as lições que lhes foram ensinadas; mas em que, não havendo nas próprias pessoas um estímulo para o desenvolvimento espontâneo, a quase única esperança que têm de dar alguns passos à frente depende das chances de terem um bom déspota. Sob um despotismo nativo, um bom déspota é um acidente raro e transitório; mas quando estão sob o domínio de um povo mais civilizado, esse povo deve ser capaz de fornecê-lo constantemente. O país governante deveria ser capaz de fazer por seus súditos tudo o que poderia fazer uma sucessão de monarcas absolutos, garantido por uma força irresistível contra a precária estabilidade dos despotismos bárbaros e qualificado por sua capacidade para prever tudo que a experiência ensinou às nações mais adiantadas. Este é o governo ideal de um povo livre sobre um povo bárbaro ou semibárbaro. Não precisamos esperar para ver esse ideal realizado; mas, a não ser que algo seja feito nesse sentido, os govemantes são culpados de negligenciar o mais alto dever moral que pode caber a uma nação: e, se nem mesmo objetivarem isso, são usurpa dores egoístas, tão criminosos quanto qualquer um daqueles cuja ambição e rapacidade brincaram, de uma era para outra, com os destinos das massas de seres humanos.

Já que é uma condição comum, tendendo rapidamente a tornar-se universal, das populações atrasadas serem subjugadas diretamente pelas mais adiantadas, ou estarem sob a sua total ascendência política, existem no período atual do mundo poucos problemas mais importantes do que a maneira de organizar esse domínio de modo a torná-lo um bem em vez de um mal para o povo subjugado, fornecendo-lhes o melhor governo possível atualmente e as condições mais favoráveis a um futuro desenvolvimento permanente. Mas a maneira de adequar o governo a essa finalidade não é tão bem compreendida quanto as condições de um bom governo num povo capaz de governar a si mesmo. Podemos até dizer que não é entendida de modo algum. [...]

[...] É sempre com grandes dificuldades, e de forma muito imperfeita, que um país pode ser governado por estrangeiros, mesmo quando não existe extrema disparidade, em hábitos e em idéias, entre os governantes e os governados. Os estrangeiros não se identificam com o povo. Não podem julgar, segundo a forma como uma coisa aparece às suas mentes, nem segundo o modo como ela afeta seus sentimentos, como afetará os sentimentos ou aparecerá às mentes da população subjugada. O que um nativo do país, de capacidade prática mediana, sabe como que por instinto, eles têm de aprender lentamente, e mesmo assim de forma imperfeita, pelo estudo e pela experiência. As leis, os costumes, as relações sociais, sobre os quais têm de legislar, em vez de serem conhecidos desde a infância, lhes são totalmente estranhos. [...]

[...] O máximo que podem fazer é dar a missão de cuidar disso a alguns de seus melhores homens, para quem a opinião de seu próprio país pode nem ser um guia para o desempenho de suas funções, nem um juiz competente da maneira como elas devem ser desempenhadas. [...]

 

 

 

Notas


[i] Refiro-me aqui à adoção dessa política melhorada, e não, evidentemente, de sua sugestão original. A honra de ter sido seu primeiro defensor pertence, sem qualquer dúvida, a Mr. Roebuck.

 

 

 

Do livro: Ishay, Micheline R. (org.). Direitos Humanos: Uma Antologia – SP Edusp, 2006 p. 465 a 476.
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