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A palavra democrática: ou da utopia da necessidade à utopia poética - 1998

JANINE RIBEIRO, Renato

A palavra democrática: ou da utopia da necessidade à utopia poética
Revista USP (Dossiê Direitos Humanos no Limiar do Século XXI): 37: Mar- Abr- Mai: 1998: 102 - 107

Tornou-se lugar-comum estes últimos anos (desde que a derrota fascista rodeou a palavra democracia de um coro de elogios, pondo fim ao desdém que muitos lhe votavam até a Segunda Guerra Mundial) dizer que há democracia quando cessa o uso da violência, assim entendida essencialmente a força física. Dessa forma se atribui à palavra um forte poder: o de fazer cessar o mundo animal e introduzir, ou mesmo instituir, o mundo propriamente humano. Mais que isso: um mundo marcado, em seu cerne, pela igualdade.

O principal nessa concepção é que a palavra permite aos distintos atores trocarem de papel ou de lugar. Se nos pautamos pela força física, o descompasso entre A e B é radical. Mas, desde que a palavra determina o encontro entre eles, todo um mundo humano ­ isto é, não bestial ­ se viabiliza: o do diálogo, da igualdade, do respeito ao outro, da reciprocidade, das razões que se medem e se trocam.

Essa postura pressupõe que a força física estabeleça entre os homens um poder que, não tendo o consentimento dos dominados, carece de legitimidade e, portanto, de estabilidade. O próprio Hobbes, tão criticado pela simpatia que exprimia por um poder capaz de amedrontar a todos, já notava que o mais forte, no estado de natureza, pode ser vencido pelo mais fraco, se este for astuto ou se coligar com outros homens (1). Um século e pouco mais tarde, Rousseau dirá, ao tratar no Contrato Social do "pretenso direito do mais forte", que de nada vale um direito que muda quando a força muda ­ o que, portanto, faz com que a palavra "direito" nada acrescente ao fato bruto da força (2). Daí que, para os humanos, seja decisivo superar o mundo da força. Percebemos nesta passagem de Rousseau um traço essencial da nascente contestação ao Antigo Regime. Para deslegitimar a monarquia absoluta, seus opositores terminarão por mais ou menos identificar a força com o preconceito, contrapondo-lhes um novo mundo, fundado na palavra, na razão e na liberdade. Assim desqualificarão as antigas bases do poder absoluto, que o fundavam em Deus: o rei e a nobreza não terão mais sangue azul, nem missão outorgada pelo Criador. Se prevalecem, é apenas devido à força de que dispõem e à ignorância de seus subordinados. Ao se desqualificar o pretenso direito do mais forte, e mais que isso, ao implícita e gradativamente fazer-se coincidir com ele a monarquia absoluta, esta deixa de ser o regime do vigário de Deus na Terra, para tornar-se desgoverno, desmando de animal feroz, bicho com o qual os humanos nada podem ter em comum, e a quem devem, mesmo, matar, para se defenderem (3).

A linguagem, nessa concepção, que hoje pode dizer-se dominante, é a grande característica do ser humano, constituindo mesmo sua humanidade. Democracia e política têm a ver com ela. Assim, a linguagem geralmente é pensada como um artifício primordial, que recorta o homem da natureza, do mundo do que está dado, dos fatos. Por um lado, o animal, a natureza, a coisa bruta, por outro, o homem, com sua indeterminação e liberdade. Talvez, aliás, assim até se emancipe o humano do fatum ou destino: com a linguagem se constrói a liberdade do homem, um ser sem programação prévia.

Além disso, a linguagem forja a igualdade do homem. O fato de haver interlocução entre dois seres humanos, de eles se constituírem mutuamente como partes num diálogo, determina que pelo menos formalmente ­ e aqui a forma é decisiva ­ eles se realizem como iguais.

Por fim, mais e mais se consolida hoje a convicção, pelo menos implícita, entre os que discutem teoria política, de que só a democracia realizaria adequadamente a política. Este pressuposto se evidencia ao se notar que boa parte dos discursos sobre a política, hoje, a define por traços que remetem à vida democrática. Afirma-se que a política está na substituição da força pela palavra, no primado da linguagem, no diálogo: em suma, nos

traços que constituem a racionalidade, a liberdade, a igualdade dos seres humanos.

A conseqüência disso, convém notar, é que política e democracia se tornam quase sinônimos ­ e que passa a ser difícil pensar como regime político um que não seja democrático. Formas de dominação não-democráticas serão vistas, cada vez mais, como também não sendo políticas ­ ou seja, como constituindo modos de uso da força, não do poder. Sabe-se que se costuma distinguir força e poder porque aquela é da ordem física, este da ordem humana. Isso significa que a força tem por modelo a ação de um sujeito sobre um objeto que, em tese, estará inerte, enquanto o poder se dá na relação entre humanos, que nunca são totalmente passivos e que agem e reagem ­ de modo que haverá preeminência e subordinação, mas não sujeição absoluta. Em suma, o poder assenta em algum consentimento, ao passo que a força só conhece, por vontade, a do sujeito que controla uma coisa. O poder tem alguma reciprocidade e pratica um modo de relações em que nunca a ação está inteiramente de um lado e a passividade de outro; já a força executa, ou pelo menos pretende e acredita executar, precisamente esse modelo de exterioridade e pleno domínio do agente sobre o agido. Por isso, se somos humanos ­ nessa concepção ­ nosso mundo é o do poder, nunca o da força.

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Esta é, em síntese, uma representação corrente, e mesmo dominante, da coisa política. Mas, se as coisas não forem tão simples?

O problema é que essa concepção ­ que em linhas gerais pode ser correta (é por exemplo a que Jean-Pierre Vernant indica, em seu As Origens do Pensamento Grego) ­ pode implicar que a palavra seja limpa demais, que nela circule um sentido essencial, despido de conotações, de densidades. Mas nada, no estudo da linguagem, confirma essa convicção. Ao contrário, o que as mais diversas teorias sobre a linguagem, lingüísticas ou não, apontam é que ela se carrega de conotações, e nada é sem estas.

Isso é o que chamaremos de densidade e de "sujeira" da linguagem. Por densidade, pensamos basicamente na carga poética. Esta não aparece apenas nos versos ou sequer na literatura, naquilo que os alemães chamam de Dichtung e que designa a criação literária: exibe-se já na fala cotidiana, toda vez que a linguagem se carrega de funções menos diretamente utilitárias (como mostrou Roman Jakobson, em seu célebre artigo "Lingüística e Poética").

Na palavra a denotação é importante, mas nem por isso é o centro dos discursos e, sobretudo, daqueles discursos em que o destinatário se mostra relevante. Ora, um dos traços essenciais do discurso político é o caráter essencial do destinatário da mensagem, a quem cabe realizar a palavra ou a intenção do emissor. Assim, no discurso político, mais que em outros, a conotação não é menos importante que a denotação. Talvez esteja subjacente, ao anseio de um discurso político transparente, o sonho de que a produção da linguagem se dê num vazio de circulação, num vácuo de tudo o que diga respeito ao destinatário. Acontece, porém, que o homem é um ser social, e isso implica que a circulação já esteja implicada na produção de sua linguagem, não sendo ela, em absoluto, um momento posterior e derivado, mas sim suposto desde o início. Onde isto melhor se mostra é, repito, no discurso político. Não há pois, "no princípio", um verbo produzido numa relação inocente com seus referentes, ou num vazio de recepção, ou ainda num nexo inocente com os futuros e almejados receptores.

Já por "sujeira" ­ o termo, sem dúvida, é excessivo (4) ­, entendemos não o que se celebra com o nome de poesia, mas o que se denigre como ideologia. O elemento de manipulação do outro é bastante freqüente na linguagem. Percebe-se melhor no discurso

propriamente político, mas nas últimas décadas se apontou sua presença em inúmeros discursos de aparência inocente ­ desde as Mitologias de Roland Barthes, sem esquecer Para Ler o Pato Donald de Armando Mattelart, e outros. Na publicidade, na religião, no direito e em várias das ciências sociais aplicadas se descortinou assim um discurso ideológico subjacente e inconfesso.

Mas não pensamos, com isso, retomar a crítica marxista à ideologia burguesa ­ até porque se poderia argumentar que também ela é ideológica O fato é que, mesmo sem a intenção explícita de manipular o outro (e a ausência dessa intenção explícita é o traço essencial da ideologia, distinguindo-a da mentira, já que na construção da ideologia é decisivo que também o construtor esteja tomado pelas convicções que deseja incutir nos outros (5), ocorre, socialmente, essa manipulação.

Cabe, finalmente, falar dos casos em que há uma deliberada manipulação do destinatário. São os casos da sedução. Na sua representação clássica, com D. Juan e sobretudo Casanova, o sedutor é uma figura que propositadamente fornece de si mesmo duplos, ficções, que desviem da boa rota a pessoa (geralmente, uma mulher) a quem intenta conquistar. São casos de investimento consciente do poder.

A sedução é a realização suprema da retórica. Esta última, estudando as paixões humanas, pergunta como o discurso deve se configurar para melhor manejar o seu destinatário, entendido antes de mais nada como um ser de afetos, de paixões. E é na sedução que esse jogo extrapola, decididamente, as palavras, para meter-se no "clima", no entorno, e para conquistar, o mais das vezes, uma mulher.

Ora, a mulher é metáfora, em quase toda a história ocidental (e talvez oriental), da fragilidade humana. No direito romano retomado pelos medievais, dizia-se que ela era "menor perpétua", isto é, uma criança que jamais cresceria: o que permitiu afirmar que todos somos (ou fomos) mulheres enquanto crianças, assim como a multidão é feminina quando se deixa possuir pelo líder-macho, pelo líder-máximo, Hitler, Mussolini.

Estes casos mostram como a linguagem dificilmente convém ao modelo de uma troca de idéias e de vontades límpida, que fundaria a interlocução ou o diálogo democrático ou político. O que é preciso discutir é, portanto, esta palavra cuja troca funda as relações democráticas, ou políticas, ou, mesmo, caracteristicamente humanas (entendendo que o homem é mesmo homem na medida em que se mostra capaz de discutir e construir sua própria socialidade (6).

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Não cabe contestar por completo as teses que expusemos e criticamos. Há, pelo menos, alguma legitimidade na tese de que a política e a democracia estejam vinculadas à destituição da força. Mas é preciso discutir o horizonte dentro do qual elas se colocam, entre o ideal de uma denotação e as possibilidades/realidades da conotação.

Aliás, a própria idéia de substituir a força bruta pela palavra já se mostra pouco atual. A ameaça à liberdade, à igualdade, à humanidade mesma reside cada vez menos na força física. Essa hoje é pouco mais que um resíduo folclórico, com o qual se lida nos cantos perdidos da sociedade. Em nossos dias a força que realmente silencia o dissidente é a econômica. Por isso mesmo, se a democracia há de ter algum sentido, não será mais, em sua essência, como aquele conjunto de relações que suprimem a força bruta: só poderá ser como aquele que abre a caixa-preta do poder econômico ou, pelo menos, limita sua desmedida.

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Por isso é primordial debater o princípio mesmo segundo o qual a palavra sustenta a democracia: que palavra? Qual modelo de palavra estará presente nessa discussão? É possível haver uma palavra democrática que seja, ao mesmo tempo, densa (prenhe, por exemplo, de poesia)? É possível ser democrática uma palavra que seja, ao mesmo tempo, suja (carregada, por exemplo, de manipulação ideológica)? E, evidentemente, as fronteiras aqui são lábeis, de modo que entre o denso e o sujo as passagens possam ser múltiplas.

Na verdade, é um equívoco constituir como um ideal o diálogo limpo, sem perturbação ou ruído. Ele pode até sê-lo: um ideal de trocas entre os humanos sem manipulação, sem engano, numa sociedade aberta e transparente. Boa parte das utopias históricas, desde a de Morus, assim se propõe a eliminar do social tudo o que seja mentira, ilusão, manipulação. O título da célebre obra de Starobinski sobre Rousseau ­ A Transparência e o Obstáculo ­ viria a calhar para esse propósito.

Por aí fica evidente o contraste entre a transparência do diálogo democrático, respeitoso do outro, e a manipulação presente no discurso a que chamamos ideológico. Mas a dimensão do ideal não se esgota nessa primeira possibilidade. Se nos contentássemos com ela, teríamos um modelo de socialidade ideal marcado pela exclusão do ruído, do diferente ­ daquilo cuja defesa tem marcado, desde vários anos, contra o marxismo e sobretudo contra seu herdeiro, o socialismo real, o pensamento de inúmeros autores que fazem uma releitura positiva da tradição democrática e mesmo liberal do Ocidente (7).

É isso o que exige acrescentar, como ideal, a palavra a que chamamos densa. A diferença decisiva entre as utopias da necessidade, ou austeras, e as utopias mais propriamente poéticas é a atenção que estas últimas prestam ao caráter conotado da linguagem.

Longe de querer, na linha da condenação ocidental à retórica que inaugura a modernidade (e tem seus pontos iniciais e altos na crítica de Descartes aos jesuítas, e de Hobbes aos escolásticos), que o discurso seja eficaz à medida de sua limpidez, e que por isso deva repelir o que excede a denotação, o que desejamos é ­ apostando justamente no que parecia ser desvio, falha ou excesso ­ instituir sentidos enriquecidos. Para a democracia é essencial a riqueza, mas só a riqueza essencial, isto é, a riqueza de sentidos.

Assim, na verdade, o debate aqui proposto incide de dois modos sobre o modelo de uma palavra transparente, cuja troca quase que puramente denotativa constituiria o eixo da vida democrática. Trata-se, primeiro, de contestar esse paradigma por não dar conta dos inúmeros modos pelos quais se domina ou se controla o outro sem passar necessariamente pela força, mas sim e com maior eficácia pela palavra e a persuasão. Um mando manso, um mando cordato, sedutor é hoje mais significativo ­ e mais perigoso para a liberdade dos agentes humanos ­ do que o velho modelo da força bruta. Melhor dizendo: a força bruta ainda exerce seu primado por toda a parte ­ e é testemunho disso a violência que fere em seus direitos humanos os mais pobres (8)­, mas o risco atual, o perigo que ronda o futuro, parece ser menos o do predomínio da força bruta que o da palavra mansa, do dinheiro intangível: as redes digitalizadas pelas quais circulam as finanças constituem, hoje, um aparelho de controle cuja violência não se pode visualizar, e que se casa muito bem com um reforço dos modos de dominação que passam pelas novas retóricas.

Contudo, se ficássemos nesse primeiro ângulo de ataque à palavra transparente, não faríamos mais que clamar por uma palavra "verdadeiramente" transparente, "genuinamente" democrática. Dizendo de outro modo, o parágrafo que precede poderia muito bem ser formulado da seguinte maneira: a palavra que os defensores da democracia atual chamam de democrática só o é insuficientemente. Na verdade, ela tem dívidas inconfessas com um sistema de dominação que é o do dinheiro, mais discreto que o da antiga força bruta, e por isso mesmo mais insidioso, do qual é difícil nos defendermos. Em suma: estaríamos apenas radicalizando um discurso que é o da transparência como ideal político. Concordaríamos em linhas gerais com esse leitmotiv de uma glasnost habermasiana de fim de século, mas apenas o acharíamos superficial.

Contudo, aqueles a quem criticamos poderiam objetar-nos que nosso (hipotético) discurso seria apenas "parasita" do deles, com o qual travaria o jogo meio perverso de quem quer ser mais realista que o rei, já que mais autêntico que o criador do discurso. É esse o jogo em que desde pelo menos os hegelianos de esquerda, passando pelos trotskistas (9), boa parte da esquerda se meteu. Pois note-se o limite em que esbarra esse procedimento: ao se instituir a esquerda como a versão autêntica ou aprimorada da democracia liberal ou social, ela se reduz a seu duplo, e sua diferença em face dela se limita a ser uma de maior pureza, de maior certeza, de maior verdade. Deixa de haver diferença de natureza, ou de qualidade ­ ou, simplesmente, diferença: já que, a separar o crítico portador da verdade e o criticado, tudo o que subsiste é uma distinção de grau, de quantidade ou, pior, de limpeza.

Daí que seja necessário criticar a tópica da palavra democrática por uma segunda via. Era preciso mostrar que é insuficiente a análise que os defensores dessa tese fazem da vida política atual, ou seja, que eles lêem mal o modo como se pratica a política, ou, ainda, que é inadequada sua leitura epimetéica, aquela que se volta para o passado ou, ampliando-o, para o existente: e sua falha está em ignorar a manipulação branda do outro, voltando toda a ira contra um controle visível, tangível, o da força física, quando hoje a manipulação passa por redes de afetos. Mas agora é preciso mostrar que esse mesmo universo é falho se o pensamos pelo viés prometéico, ou seja, o que se volta para o futuro.

Não se trata, pois, de propor uma palavra tão democrática que se livre até mesmo do que lhe restava de não-transparência. Não se trata de radicalizar a transparência! Ao contrário, o que se quer é apostar nas riquezas que a não-transparência porta. Estas são de natureza poética. São de ordem utópica. A limpeza, a faxina, a higiene não pertencem, ou pertencem mal, à tópica democrática. Ao contrário, se pode haver democracia, concebida, mais do que como um modo de resolução de conflitos, como um conjunto de valores que venham adensar a vida social do campo da amizade e do amor até as relações de trabalho e vizinhança, em suma, se a idéia é que a democracia, em seus vários sentidos, constitui o cerne da vida boa com que se ocupam os moralistas, será necessário que esse regime do viver seja denso e não despojado.

E é por isso que uma palavra democrática densa, que retome o poético, não pode debater-se só entre especialistas. Discutir a democracia envolve várias profissões, em especial aquelas que trabalham a densidade da linguagem. Contra Platão, que expulsava os poetas da pólis, entendemos que só pode haver política se houver, nela, o poético.

 

Notas

1 Hobbes, Leviatã (1651), cap. XIII, início.

2 Rousseau, Do Contrato Social, livro I, cap. III ("Do Direito do Mais Forte").

3 Ver, para as passagens em que o déspota ou o governante absoluto é assimilado a animal feroz, John Locke, Dois Tratados sobre o Governo, passim.

4 É excessivo falar em sujeira, até porque adiante criticaremos, por higienistas, as concepções da palavra democrática que a têm por transparente. Empreguei, porém, essa palavra de propósito, para ressaltar aquilo a que ela se opõe, e que é uma visão da política democrática como limpeza: não será significativo que, quando o comunismo soviético entrava na crise final de sua hegemonia, Gorbatchev tenha proposto como ideal a glasnost, a "transparência"? O que argumentamos é que esta é, por princípio, impossível; e talvez seja indesejável, mas desde que compreendamos que a ela se opõe, não o obscurecimento autoritário, mas o adensamento da linguagem poética.

5 Este é o ponto que o leigo tem maior dificuldade em entender, na teoria (marxista ou não) da ideologia. Parece quase inevitável tomar-se a ideologia por uma manipulação deliberada, a exemplo daquilo que a propaganda anti-semita constituiu em torno da falsificação conhecida como Os Protocolos dos Sábios do Sião: um grupo de proeminentes judeus que teriam tramado tomar o mundo. Devemos analisar por que uma visão conspirativa do social atrai mais que a visão seca que o marxismo propõe, na qual a construção da ideologia supõe que esta última também afete, em sua (in)consciência, seus próprios construtores. Não se trata, apenas, da banalidade segundo a qual uma crença será tanto mais forte quanto mais creiam nela seus próprios difusores. Mas de entender que o processo social gera, não só consciências diferentemente matizadas, como, sobretudo, diversos matizes de inconsciência.

6 Podemos chamar esta de uma concepção grega revista. É grega a convicção de uma superioridade da vida na pólis sobre a vida apenas doméstica ou, pior ainda, servil, bem como a idéia de uma primazia da política. Se o grego (ou seja, quem fala a língua grega) é superior aos bárbaros, é também porque só ele está apto ­ naturalmente ­ para a vida em sociedade, enquanto os demais apenas conseguem esse tipo de vida mediante o emprego da força pelo soberano, que é, portanto, um déspota (como a região desses déspotas é o Oriente, temos aqui as remotas origens daquela personagem que depois da queda de Constantinopla receberá o nome de "déspota oriental"). Retoma-se, aqui, a idéia de uma primazia do político, já que é nele que ocorre a re-flexão, a volta do homem sobre suas condições de vida a fim de decidi-las. Mas a diferença em face dos gregos está em recusarmos o natural que caracterizava, entre eles, a disposição do homem livre para a vida política. Esta é concebida, sem que isso diminua sua dignidade, como um construto. Longe de ser o coroamento de uma natureza humana, a vida política é uma construção, e mesmo a condição para o homem humanizar-se.

7 Poderíamos citar Hannah Arendt, Claude Lefort e, no Brasil, a obra pioneira ­ pioneira no meio dos marxistas ­ de Carlos Nelson Coutinho sobre a democracia como valor universal.

8 Pouco antes da abertura deste Colóquio, policiais militares haviam sido filmados, na cidade paulista de Diadema, agredindo populares. Pela época mesma do colóquio, as notícias que vinham de Ruanda, Burundi e do Zaire eram assustadoras, pelo número de pessoas massacradas num dos inúmeros genocídios que ocorrem mundo afora.

9 Refiro-me às críticas a Stálin que se encontram com freqüência nos textos do próprio Trótski ou de Isaac Deutscher, e que muitas vezes consistem em mostrar que o ditador, epítome de tudo o que havia de errado e mesmo de traidor, fazia mal o que o trotskismo faria bem. Não são poucas as referências a medidas de Stálin que seguem, mal, o que Trótski havia proposto. O mesmo modelo de relação com a esquerda comunista será seguido pelos trotskistas nas décadas posteriores, podendo ser entendido de várias formas, conforme a posição política de quem o analise: esforço para forçar os partidos comunistas a retomar os ideais revolucionários ­ ou "entrismo" oportunista de quem não tem vigor próprio para constituir um movimento de massas e tenta, por isso, parasitar o que existe.


* A ficha de crédito de Renato Janine Ribeiro encontra-se no texto de apresentação

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